"O mundo do faz de conta lado a lado com a realidade"

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

QUANDO EU FALAVA DESSAS CORES MÓRBIDAS


Espelho, espelho meu.

por Lorreine Beatrice

Todo mundo sabe que a morte na literatura fascina tanto (ou mais) que as próprias manifestações de vida. Talvez pela sua essência desconhecida, talvez pela atmosfera de mistério que teima em aparecer.

Melhor ainda é quando Thanatos ganha traços humanose passa a ser um de nós. Ao mesmo tempo em que desempenha sua função (mórbida) evidente, abre espaço para fraquezas e medos tipicamente humanos.

Dentre tantos exemplos, escolho duas representações peculiares da morte. A primeira é retratada em As Intermitências da Morte, do escritor português José Saramago. O primeiro grande fato da narração é “No dia seguinte ninguém morreu”. Se até a morte hesita, você pode imaginar quão confuso fica o mundo a partir de então. A morte, nesse caso, escreve cartas e manda seus próprios avisos, como um arauto de si mesmo.

Na segunda parte do livro, porém, quando uma das cartas começa a voltar, ela transfigura-se em humano (humana, para ser exato) e aproxima-se do destinatário que ela não consegue matar. A partir daí, a narração ganha um tom mais intimista, para contar a história de duas “pessoas” específicas, afastando-se um pouco do tom caótico social tão presente nas obras de Saramago.

Já ouvi gente dizer que As Intermitências da Morte é mais uma junção de clichês de um mestre português que tenta ser original. Já ouvi que é um livro interessantíssimo, que faz pensar no coletivo e no individual. Indiferente às declarações, o que afirmo é que vale a pena ser conferida a maneira com que a morte é humanizada pelo autor. Sim, ela é fria e calculista como toda a morte imaginada, mas tem momentos de ponderação.

O segundo exemplo desmente o que acabo de dizer acima. Não, a morte imaginada não é sempre fria e calculista. Não, ao menos, no livro A Menina que Roubava Livros, de Marcus Zusak. A morte é a narradora dessa história e, como toda boa narradora, precisa ser sensível para captar certos relances. Deve ter um olhar além do comum. A morte se encontra três vezes, frente a frente, com a protagonista Liesel, mas a acompanha por toda a vida (como que à espera de levá-la). Sem ser uma narradora onipresente, a morte tem uma serenidade para anunciar acontecimentos futuros e resgatar passados, como quem relembra uma história. Sim, em A Menina que Roubava Livros, a morte vive e reside, com uma poesia pulsante.

Há os que reclamem dos clichês nesse segundo caso também, mas eu destaco as metáforas coloridas que o autor emprega na voz de sua narradora, que tinha tudo para ser frívola e não é. Tudo porque, ao menos na literatura, até a morte tem cores vivas.

Lorreine escreve para o Mundo Fabuloso todas as quintas-feiras na seção “Espelho, espelho meu”.



2 comentários:

cláudio brasil disse...

Legal Lorreine!

Fiquei curioso.
Tenho o pdf de "A Menina que Roubava Livros" e vou começar a ler depois que acabar de devorar o "Caçador de Pipas".

Até mais!!!

Lorreine Beatrice disse...

Tem gente que tem uma certa resistência em ler bestsellers, mas acho que quem gosta dos livros mesmo, não pode ter preconceitos.
Creio que vc vai gostar.

Já viu o filme Caçadores de Pipa? Vale à pena conferir também.

Valeu!